As organizações religiosas, popularmente conhecidas como igrejas, desempenham um papel fundamental na sociedade, atuando na promoção da fé, da moral e do bem-estar social. Contudo, a sua natureza jurídica de pessoa jurídica de direito privado as submete a um rigoroso conjunto de leis e regulamentações, especialmente no que tange à sua finalidade estatutária. O desvio de finalidade em igrejas representa uma prática arriscada, com severas implicações jurídicas e fiscais, que podem comprometer não apenas a credibilidade da instituição, mas também a integridade de seus líderes.
A Natureza Jurídica das Igrejas e Sua Finalidade Essencial
No Brasil, as igrejas são classificadas como pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, e são reguladas pelo Código Civil e por legislações específicas aplicáveis a entidades não governamentais. A sua constituição e funcionamento são amparados pela liberdade religiosa, garantida pela Constituição Federal. No entanto, essa liberdade não as isenta do cumprimento de deveres legais e fiscais.
A característica central e inegociável de uma igreja é a sua finalidade exclusivamente religiosa. Isso significa que todas as suas atividades, patrimônio e receitas devem estar intrinsecamente ligadas à promoção do culto, da doutrina, da assistência religiosa e social em consonância com seus propósitos espirituais. Qualquer ação que se desvie desse objetivo primordial pode configurar um desvio de finalidade em igrejas.
O Que Caracteriza o Desvio de Finalidade?
O desvio de finalidade em igrejas ocorre quando a instituição ou seus gestores utilizam a pessoa jurídica para propósitos que não condizem com sua natureza religiosa e social. Isso pode se manifestar de diversas formas, entre as quais:
- Busca por Vantagens Fiscais Ilícitas: Abrir uma igreja com o principal intuito de usufruir de imunidades e isenções tributárias (como IPTU, IPVA, IRPJ, CSLL) sem desenvolver atividades religiosas genuínas. Essa prática pode ser interpretada como simulação com intuito ilícito.
- Uso Pessoal do Patrimônio/Receita: Utilização do CNPJ da igreja para aquisição de bens (veículos, imóveis, etc.) ou para movimentação financeira que beneficie diretamente pessoas físicas (líderes, familiares) sem relação com as atividades da instituição.
- Atividades Comerciais Disfarçadas: Operar como uma fachada para atividades comerciais que geram lucro e não estão ligadas à sua missão religiosa, sem a devida tributação sobre tais rendimentos.
- Descumprimento de Obrigações Acessórias: A omissão na entrega de declarações fiscais e contábeis obrigatórias, ou a apresentação de informações falsas, pode ser um indício de desvio de finalidade, pois dificulta a fiscalização.
Riscos Jurídicos: Perda da Personalidade Jurídica e Responsabilização
As consequências jurídicas de um desvio de finalidade em igrejas são graves. A autoridade judiciária pode desconsiderar a personalidade jurídica da entidade, o que significa que o patrimônio dos administradores e diretores pode ser atingido para cobrir dívidas e obrigações da igreja. Isso expõe líderes religiosos a processos cíveis e até criminais, dependendo da natureza do desvio.
Além disso, a igreja pode ter sua inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ) suspensa ou cancelada, impedindo-a de realizar qualquer tipo de transação legalmente. Em casos extremos, a própria existência da instituição como entidade religiosa pode ser questionada e sua dissolução decretada judicialmente.
Riscos Fiscais: Imunidades Comprometidas e Autuações
Do ponto de vista fiscal, o desvio de finalidade em igrejas anula os benefícios de imunidade tributária previstos na Constituição Federal (Art. 150, VI, “b”). As imunidades são concedidas sob a condição de que o patrimônio, a renda e os serviços da instituição sejam utilizados exclusivamente para os fins essenciais da entidade.
A Receita Federal do Brasil (RFB) possui mecanismos sofisticados de cruzamento de dados que permitem identificar movimentações financeiras ou patrimoniais incompatíveis com a finalidade religiosa. A falta de registros contábeis adequados, a não conformidade com as obrigações acessórias (como ECD, ECF, eSocial, DCTFWeb) ou a inconsistência nas informações prestadas podem rapidamente acender um alerta.
Detectado o desvio, a igreja pode ser autuada, resultando na cobrança retroativa de impostos que deveriam ter sido pagos (IRPJ, CSLL, PIS, COFINS, IPTU, etc.), acrescidos de multas pesadas e juros. Em situações de fraude ou simulação, as penalidades são ainda mais severas, podendo chegar a 150% do valor do imposto devido, além de representações fiscais para fins penais contra os responsáveis.
A Importância da Governança e Transparência
Para mitigar os riscos associados ao desvio de finalidade em igrejas, a adoção de práticas de boa governança e transparência é imperativa. Isso inclui:
- Contabilidade Rigorosa: Manter uma contabilidade completa e transparente, que reflita fielmente todas as receitas, despesas e o uso do patrimônio.
- Observância Estatutária: Assegurar que todas as atividades e gastos estejam em estrita conformidade com o que dispõe o estatuto social da igreja.
- Compliance Fiscal: Cumprir rigorosamente todas as obrigações tributárias e acessórias, dentro dos prazos estabelecidos.
- Estrutura de Controle Interno: Implementar mecanismos de controle que evitem a má gestão e o uso indevido dos recursos da instituição.
- Comunicação Clara: Informar aos membros e à comunidade sobre a destinação dos recursos, promovendo a confiança e a legitimidade da obra religiosa.
O profissional da contabilidade desempenha um papel crucial nesse processo, atuando não apenas como executor das obrigações fiscais, mas como consultor estratégico, orientando a igreja para a conformidade legal e a gestão ética de seus recursos.
Em suma, a missão espiritual de uma igreja deve ser acompanhada de uma gestão administrativa e fiscal impecável. O desvio de finalidade em igrejas não apenas compromete a legitimidade da instituição perante a sociedade e os fiéis, mas também expõe seus líderes e o próprio patrimônio da entidade a consequências jurídicas e fiscais extremamente onerosas. A observância da lei é um pilar tão importante quanto a fé para a longevidade e prosperidade de qualquer organização religiosa.